Keila Grinberg, professora de história da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), discute divulgação científica, ensino de história e internet em artigo exclusivo para o Café História
Por Keila Grinberg
Por Keila Grinberg
O advento da internet trouxe novas questões para a produção do conhecimento. Já chamada de “o quadro negro do futuro”, antes do entretenimento online e do e-commerce, ao surgir a internet foi imediatamente atrelada a possibilidades de renovação de métodos de ensino (1), mesmo que o mundo dos negócios tenha avançado bem mais rápido no uso da rede do que o da educação. De qualquer forma, aliar os avanços tecnológicos e da comunicação a novas formas de educar já seduzia professores e universidades desde pelo menos a década de 1960, com a criação das primeiras Universidades Abertas na Europa, dedicadas ao ensino à distância, mais ou menos na mesma época que a linguagem da educação em massa começava a mudar, e a ênfase na palavra “aprendizado” ganhava espaço em relação à quase démodé “ensino”.
Mas o espaço que as chamadas novas tecnologias ganharam no campo da reflexão em Educação não encontrou correspondente similar na área de História. Para além da utilização do computador como ferramenta para construção de bancos de dados, principalmente por especialistas em história econômica, quantitativa ou demográfica – procedimento feito desde a década de 1960 – até recentemente foram poucos os historiadores que se dedicaram a refletir sobre as mudanças que a rede mundial de computadores traria à pesquisa, à produção e à divulgação do conhecimento em História (2).
Como bem notou Camila Dantas, os primeiros historiadores a chegarem na internet foram os amadores, seguidos por centros universitários e instituições de memória. Atualmente, projetos de divulgação científica em História na internet, a maioria localizada nos Estados Unidos, estão mesclados a reflexões mais amplas sobre os documentos produzidos em meio digital e as novas formas de realização de pesquisa acadêmica, como o projeto Digital History, desenvolvido por Daniel J. Cohen e Roy Rosenzweig na George Mason University (3).
Hoje, a maioria das atividades de historiadores na internet é relativa à digitalização de documentos e de acervos de instituições, tanto para preservá-los quanto para torná-los acessíveis a pesquisadores e interessados que dificilmente a eles teriam acesso. No Brasil, além de instituições como a Biblioteca Nacional e o Arquivo Nacional, fundamentais na discussão pública sobre a digitalização de acervos, são importantíssimas as iniciativas de grupos de pesquisa, que vêm elaborando projetos de digitalização e disponibilização online de documentos de outro modo praticamente inacessíveis ao pesquisador.
Estes avanços na disponibilização e tratamento com fontes históricas nos coloca diante de novas e complexas questões: por exemplo, a de como preservar os documentos já criados em formato digital. Este e outros desafios certamente acompanharão o trabalho dos historiadores do futuro.
Assim, creio estarmos diante de vários desafios relativos à História, à internet e à divulgação do conhecimento científico. O primeiro é o enunciado anteriormente, que mobiliza, além de historiadores, arquivistas e cientistas da informação: o desafio da preservação da documentação, produzida em vários suportes, inclusive a própria internet.
Uma história pública?
Outro desafio é a reflexão sobre a forma como o público em geral tem dialogado com os sites que disponibilizam documentos históricos, como processos criminais, registros de batismo, fotografias, relatórios oficiais etc. Hoje é muito mais fácil, para estudantes e interessados em geral, obter informações retiradas das próprias fontes históricas, coisa que anteriormente apenas os historiadores que sabiam localizá-los no mundo real o faziam.
Neste sentido, a maior facilidade em consultar documentos de épocas e locais variados significa uma maior divulgação do conhecimento histórico? Por conta da internet, estaríamos mais perto de uma História Pública, no sentido atribuído ao termo pelo National Council on Public History, qual seja, o de tornar a História, seus procedimentos metodológicos e suas referências, mais acessíveis ao grande público?
Acredito que não. Sendo um pouco pessimista, talvez um dos efeitos de tanta facilidade de acesso, neste caso principalmente a textos, possa até ter sido o contrário: apesar de não termos estatísticas ainda a respeito, é flagrante o aumento de plágios em trabalhos acadêmicos, e não há professor universitário que não tenha uma história triste para contar da ocasião em que se sentiu um policial, procurando crimes de autoria no Google (4).
Talvez aí esteja a maior dificuldade, e ao mesmo tempo o maior desafio, que une tanto o ensino de História quanto a divulgação científica na internet. Ao invés de apenas combater o plágio – que já existia mesmo antes de serem criados os mecanismos de busca, pasmem – trata-se de evidenciar, através da internet, o processo de produção do conhecimento, a começar pela própria noção de autoria, tão discutida no âmbito da criação artística. Afinal, a acessibilidade a textos e documentos proporcionada pela rede mundial de computadores, para ser bem usada, requer conhecimentos prévios sobre confiabilidade e relevância das informações a ser obtidas na internet. Sem elas, o leitor – ou o usuário do sistema – não consegue avançar na leitura e na produção de texto (de qualquer texto, de uma tese a um comentário em um blog).
Como fazer isso? Um caminho possível é criar mecanismos que permitam ao usuário – leitor, estudante, qualquer que seja seu login – conhecer as etapas do processo de produção do conhecimento em História. Assim, saber ler documentos de época, contextualizá-los, criticá-los, cotejar as informações obtidas com outros documentos e com outros textos, verificar a procedência de informações obtidas nestes textos são alguns dos procedimentos que ajudam as pessoas a observar, analisar e classificar informações de qualquer natureza. No caso das informações de natureza histórica, isto é fundamental, tanto para os estudantes de História, quanto para os interessados no assunto.
Refletir sobre o processo de produção do conhecimento histórico talvez não seja o objetivo inicial das pessoas interessadas em História – público potencial das ações de divulgação científica – que buscam a internet como forma de aprimorar seus conhecimentos. Mas talvez esta seja uma surpresa que os historiadores podem reservar a seus leitores: além de divulgar o conhecimento produzido nas universidades, divulgar também seu processo de produção. E a internet, para isso, é um meio extraordinário. Quem sabe se, agindo desta maneira, conseguiremos começar a superar o paradoxo de lidar com uma História ao mesmo tempo tão desestimulante na escola e tão interessante na mídia?
Mas o espaço que as chamadas novas tecnologias ganharam no campo da reflexão em Educação não encontrou correspondente similar na área de História. Para além da utilização do computador como ferramenta para construção de bancos de dados, principalmente por especialistas em história econômica, quantitativa ou demográfica – procedimento feito desde a década de 1960 – até recentemente foram poucos os historiadores que se dedicaram a refletir sobre as mudanças que a rede mundial de computadores traria à pesquisa, à produção e à divulgação do conhecimento em História (2).
Como bem notou Camila Dantas, os primeiros historiadores a chegarem na internet foram os amadores, seguidos por centros universitários e instituições de memória. Atualmente, projetos de divulgação científica em História na internet, a maioria localizada nos Estados Unidos, estão mesclados a reflexões mais amplas sobre os documentos produzidos em meio digital e as novas formas de realização de pesquisa acadêmica, como o projeto Digital History, desenvolvido por Daniel J. Cohen e Roy Rosenzweig na George Mason University (3).
Hoje, a maioria das atividades de historiadores na internet é relativa à digitalização de documentos e de acervos de instituições, tanto para preservá-los quanto para torná-los acessíveis a pesquisadores e interessados que dificilmente a eles teriam acesso. No Brasil, além de instituições como a Biblioteca Nacional e o Arquivo Nacional, fundamentais na discussão pública sobre a digitalização de acervos, são importantíssimas as iniciativas de grupos de pesquisa, que vêm elaborando projetos de digitalização e disponibilização online de documentos de outro modo praticamente inacessíveis ao pesquisador.
Estes avanços na disponibilização e tratamento com fontes históricas nos coloca diante de novas e complexas questões: por exemplo, a de como preservar os documentos já criados em formato digital. Este e outros desafios certamente acompanharão o trabalho dos historiadores do futuro.
Assim, creio estarmos diante de vários desafios relativos à História, à internet e à divulgação do conhecimento científico. O primeiro é o enunciado anteriormente, que mobiliza, além de historiadores, arquivistas e cientistas da informação: o desafio da preservação da documentação, produzida em vários suportes, inclusive a própria internet.
Uma história pública?
Outro desafio é a reflexão sobre a forma como o público em geral tem dialogado com os sites que disponibilizam documentos históricos, como processos criminais, registros de batismo, fotografias, relatórios oficiais etc. Hoje é muito mais fácil, para estudantes e interessados em geral, obter informações retiradas das próprias fontes históricas, coisa que anteriormente apenas os historiadores que sabiam localizá-los no mundo real o faziam.
Neste sentido, a maior facilidade em consultar documentos de épocas e locais variados significa uma maior divulgação do conhecimento histórico? Por conta da internet, estaríamos mais perto de uma História Pública, no sentido atribuído ao termo pelo National Council on Public History, qual seja, o de tornar a História, seus procedimentos metodológicos e suas referências, mais acessíveis ao grande público?
Acredito que não. Sendo um pouco pessimista, talvez um dos efeitos de tanta facilidade de acesso, neste caso principalmente a textos, possa até ter sido o contrário: apesar de não termos estatísticas ainda a respeito, é flagrante o aumento de plágios em trabalhos acadêmicos, e não há professor universitário que não tenha uma história triste para contar da ocasião em que se sentiu um policial, procurando crimes de autoria no Google (4).
Talvez aí esteja a maior dificuldade, e ao mesmo tempo o maior desafio, que une tanto o ensino de História quanto a divulgação científica na internet. Ao invés de apenas combater o plágio – que já existia mesmo antes de serem criados os mecanismos de busca, pasmem – trata-se de evidenciar, através da internet, o processo de produção do conhecimento, a começar pela própria noção de autoria, tão discutida no âmbito da criação artística. Afinal, a acessibilidade a textos e documentos proporcionada pela rede mundial de computadores, para ser bem usada, requer conhecimentos prévios sobre confiabilidade e relevância das informações a ser obtidas na internet. Sem elas, o leitor – ou o usuário do sistema – não consegue avançar na leitura e na produção de texto (de qualquer texto, de uma tese a um comentário em um blog).
Como fazer isso? Um caminho possível é criar mecanismos que permitam ao usuário – leitor, estudante, qualquer que seja seu login – conhecer as etapas do processo de produção do conhecimento em História. Assim, saber ler documentos de época, contextualizá-los, criticá-los, cotejar as informações obtidas com outros documentos e com outros textos, verificar a procedência de informações obtidas nestes textos são alguns dos procedimentos que ajudam as pessoas a observar, analisar e classificar informações de qualquer natureza. No caso das informações de natureza histórica, isto é fundamental, tanto para os estudantes de História, quanto para os interessados no assunto.
Refletir sobre o processo de produção do conhecimento histórico talvez não seja o objetivo inicial das pessoas interessadas em História – público potencial das ações de divulgação científica – que buscam a internet como forma de aprimorar seus conhecimentos. Mas talvez esta seja uma surpresa que os historiadores podem reservar a seus leitores: além de divulgar o conhecimento produzido nas universidades, divulgar também seu processo de produção. E a internet, para isso, é um meio extraordinário. Quem sabe se, agindo desta maneira, conseguiremos começar a superar o paradoxo de lidar com uma História ao mesmo tempo tão desestimulante na escola e tão interessante na mídia?
Keila Grinberg - nasceu no Rio de Janeiro em 1971. Graduou-se em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF), na qual concluiu também o doutorado em 2000, após um período como estudante visitante na Universidade de Maryland, nos Estados Unidos. Em 2002, tornou-se professora do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e, desde 2004, é pesquisadora do CNPq.
Hoje, 11 livros e vários artigos e capítulos depois, a colunista continua a estudar a escravidão no Brasil do século 19, mas se dedica também à divulgação científica na área de história e ao desenvolvimento de novas metodologias para incrementar o ensino dessa disciplina nas escolas e universidades. É colunista titular da coluna “Em tempo”, da revista Ciência Hoje Online. Envie críticas, comentários e sugestões para keila@pobox.com.
Hoje, 11 livros e vários artigos e capítulos depois, a colunista continua a estudar a escravidão no Brasil do século 19, mas se dedica também à divulgação científica na área de história e ao desenvolvimento de novas metodologias para incrementar o ensino dessa disciplina nas escolas e universidades. É colunista titular da coluna “Em tempo”, da revista Ciência Hoje Online. Envie críticas, comentários e sugestões para keila@pobox.com.