sábado, 16 de abril de 2016

A outra face do alferes


Documento raro revela um Tiradentes demasiado humano

                                                                                                                       

                                                                                       Paulo da Costa e Silva
                                                                                                        9/9/2007  


Apesar de Tiradentes ter sido um dos personagens mais estudados de nossa História, muito pouco se conhece de sua vida anterior ao movimento mineiro de 1789. Sobretudo no que se refere à sua intimidade, as informações são escassas, e não faltam controvérsias sobre seu patrimônio, sua formação intelectual, seus descendentes etc... Há, no entanto, um documento pouco conhecido do público em geral – e mesmo entre os historiadores – que traz uma faceta no mínimo curiosa do inconfidente mineiro. Trata-se do processo de Antônia Maria do Espírito Santo, que se encontra no Arquivo Público Mineiro – documentação descoberta pelo historiador Tarquínio José Barboza de Oliveira, principal organizador dos Autos da Devassa (o processo iniciado contra os suspeitos em 1789). Com a preciosa colaboração das pesquisadoras e paleógrafas Maria José Ferro e Maria Teresa ---, que transcreveram o processo de forma criteriosa segundo a fonte original, a Revista de História põe em discussão esse documento, para que, ao trazer à luz outras facetas do mitológico mártir da Inconfidência, talvez possamos nos aproximar um pouco mais da figura de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.
Entre novembro de 1789 e meados de 1790, houve em Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto um processo envolvendo Tiradentes. Nele, Antônia Maria do Espírito Santo, amásia do inconfidente, reivindica junto às autoridades locais a posse da escrava Maria, de “Nação Angolla” – junto com seus dois filhos pequenos, Gerônimo e Francisca – que fora “seqüestrada” com os demais bens de Tiradentes na ocasião de sua prisão. Para tanto, Antônia Maria alega que a escrava lhe havia sido doada pelo alferes, não pertencendo mais a Tiradentes, e que, portanto, lhe deveria ser restituída. As delicadas relações entre o inconfidente e sua concubina são expostas no processo da seguinte forma:
“Diz Antônia Maria do Espírito Santo, menor órfã do falecido seu pai Antonio da Silva Pais, que estando na companhia da viúva sua mãe Maria Josefa, vivendo com toda a honestidade e recato, a principiou a aliciar o alferes Joaquim Jose da Silva Xavier, o qual debaixo de palavra de honra e promessas esponsalícias lhe ofendeu a pudicícia, de cuja ofensa resultou conceber e dar à luz um feto do mesmo alferes, que passou ao extremoso excesso de arrancar a suplicante dos braços da dita sua mãe”. Depois de apresentar um prelúdio da união entre Tiradentes e Antônia, o documento prossegue, indicando a causa do processo: “Vivendo em sociedade por causa daquela promessa, doou à mesma suplicante uma escrava por nome de Maria, de nação Angola, que sucedendo ser preso o dito alferes Joaquim José da Silva Xavier na cidade do Rio de Janeiro, foi confiscado, ou seqüestrado com outros mais bens”.
Após a descrição do caso, surge o apelo: “porque nem a razão, nem o Direito permitem que qualquer que haja de purgar o delito alheio com os seus próprios bens, e a suplicante é uma miserável órfã(...)”.

Ou seja: para reaver sua escrava, “a menor” (como é qualificada no processo) Antônia Maria joga com informações que levam a crer que ela foi vítima dos arroubos e das falsas promessas de Tiradentes – que a tirou dos braços de sua mãe, deflorando-a, concebendo nela um rebento, sem que cumprisse, contudo, a promessa de casamento. Chama a atenção, por ser algo grave dentro do contexto da época, o fato de Tiradentes ter faltado com sua “palavra de honra” ao acenar com promessas de casamento que não foram cumpridas. O pesquisador do período da Inconfidência Mineira e doutorando da USP André Figueiredo frisa o peso da palavra na Ouro Preto do final do século XVIII e confirma a fama de boquirroto do alferes: “Numa sociedade como a mineira, a palavra representava muito. Tudo era lavrado na base da palavra: as compras do dia-a-dia, os relacionamentos amorosos, os acertos de trabalho etc. Tiradentes, segundo percebo de seus depoimentos nos Autos da Devassa, era um grande falador. Falava sem se preocupar se estava ou não atacando as relações metropolitanas”.  



No entanto, a história parece ser um pouco mais complicada do que faz supor o depoimento de Antônia Maria, o primeiro do processo. De acordo com Márcio Jardim, historiador e um dos mais conceituados biógrafos de Tiradentes – autor de livros como A Inconfidência Mineira; uma síntese factual e A Devassa da Inconfidência; o processo judicial –, o relacionamento de Tiradentes e Antônia deve ter ocorrido de maio de 1786 a fevereiro de 1787. Antônia tinha entre 16 e 17 anos quando engravidou dele, e Tiradentes, já com 40 anos, assumiu a paternidade daquela que seria sua única descendente comprovada por documentação. A filha, que se chamava Joaquina, foi batizada em 1786 na Igreja Matriz de Vila Rica, e seu padrinho, Domingos de Abreu Vieira, além de companheiro no movimento conspiratório, era um dos mais ricos comerciantes da capitania. Ao que tudo indica, Tiradentes prometeu se casar com Antônia e realmente pretendia cumprir a promessa, conforme confidenciou ao seu colega de Regimento, o soldado Ventura Mendes Barreto – confidência esta presente no documento do processo. Há ainda, dentro do mesmo documento, um outro ponto que faz a trama mais complexa e relativiza o papel de Antônia Maria como vítima, trazendo uma discreta informação sobre o rompimento da promessa. O capitão do Regimento de Cavalaria, Luis Antonio Velasco Sayão, afirma em depoimento que “conversando ele no quartel desse regimento com o alferes Joaquim Jose da Silva Xavier, lhe comunicou este a amizade ilícita que tratava com a justificante, sendo ele o que a havia deflorado e que lhe havia dado uma Preta; porém que a mesma justificante não procedia bem, e que por isso estava mal com ela(...)”.     

Márcio Jardim conta que, nessa época, Tiradentes “viajava muito e passava a maior parte do tempo no Rio de Janeiro. Num dos regressos, desgostou-se com o comportamento de Antônia e rompeu a promessa de casamento, mas deixou para ela, a filha e a sogra uma casa na Rua da Ponte Seca em Vila Rica”, além da escrava. Ainda não se sabe ao certo que tipo de comportamento teria irritado tanto o alferes a ponto de fazê-lo romper a promessa de casamento, abandonando a amásia e a filha. Tiradentes vai morar, então, na Rua de São José. Ao que tudo indica, a casa da Rua da Ponte Seca permaneceu como posse de Antônia Maria, uma vez que, junto com sua filha Joaquina, foi ali recenseada em 1804. A professora Júnia Furtado, do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, diz que rompimentos e abandonos como os de Tiradentes eram práticas corriqueiras na Ouro Preto do final do século XVIII: “Minas tem uma tradição de concubinato muito forte, e surgiu no início da colonização aurífera por vários motivos, até mesmo por uma questão demográfica, por uma imigração maciça de homens sem mulheres para casar. E também há uma forte influência da tradição africana, que não via esse tipo de união como algo censurável. Por conta da decadência da mineração do ouro, dá-se uma evasão masculina e começa um processo inverso: aumento da população feminina, mulheres solteiras que não encontram mais maridos, alto índice de bastardia, e de homens brancos com mulheres mulatas. Por incrível que pareça, Ouro Preto não era uma sociedade tradicional. Apesar de idealmente ser uma sociedade patriarcal assentada no matrimônio, na prática não era bem isso o que acontecia”. E arremata: “O comportamento do Tiradentes se circunscreve numa prática que era cotidiana, apesar de não ser o modelo idealizado pela Igreja e pelo Estado”. Júnia chama também a atenção para o perigo de se pôr Antônia Maria como simples vítima de Tiradentes: “É preciso ler com cuidado e desconfiança a figura da mulher vítima. Na verdade, a mulher de fins do século XVII já gozava de uma boa autonomia, principalmente as mais pobres. E, depois, era prática bastante comum esse tipo de abandono como o perpetrado por Tiradentes. Há diversos relatos sobre isso, e é preciso notar que não só a mulher era vítima: muitas vezes era ela que abandonava o homem! Porque não havia um laço de casamento constituído, e a ligação era, portanto, mais facilmente rompida”.

Sobre a gravidade de um defloramento sem a realização do casamento e sobre a falsa promessa, Júnia esclarece: “Para uma sociedade que vivia em torno da honra pública, do ‘ouvir dizer’, em que a verdade é o que é público e notório, o grande valor feminino era a honra. Porém, com as mulatas e pobres a questão era um pouco diferente, porque essas mulheres não estariam no mercado de casamento, como acontecia com as filhas brancas e legítimas”. 

Muito pouco se sabe sobre quem foi Antônia Maria do Espírito Santo. Para Márcio Jardim, é pouco provável a hipótese de que ela fosse mulata e tivesse baixo prestígio social, uma vez que seu pai, Antônio da Silva Pais, era funcionário público, cargo só ocupado por brancos e que conferia uma boa dose de status. Tampouco há informações relevantes sobre o paradeiro de Joaquina, filha de Tiradentes. As mulheres da época, ao se casarem, adotavam o sobrenome do marido, apagando assim as informações acerca da família de origem. Portanto, é provável que Joaquina tenha se perdido na história ao adotar o nome de casada, e com ela os descendentes de Tiradentes, conforme aponta Márcio Jardim: “A história documental da descendência de Tiradentes termina aí. Não se sabe de nenhum outro dado. Os Autos da Devassa e os documentos paralelos só foram redescobertos quase 100 anos depois, e em razão disso surgiram teorias sobre a descendência de Tiradentes, que não têm, todavia, base em provas documentais”.

Contudo, Antônia Maria do Espírito Santo não foi a única mulher na vida do alferes Xavier, homem que, ao que tudo indica, era grande apreciador dos prazeres da carne. Viajante de longas distâncias por conta de suas ocupações profissionais – comerciante, militar, dentista e joalheiro – e bastante chegado à boêmia, no livro A Inconfidência Mineira: Uma Síntese Factual, o autor Márcio Jardim nota uma “certa preferência de Tiradentes por se hospedar em casas de senhoras viúvas”, e ainda diz que o inconfidente “freqüentava os bordéis de Vila Rica, que, à época, eram ponto de encontro não só de boêmios, mas de pessoas consideráveis da cidade. Num desses encontros, chegou a gabar-se com uma prostituta de um futuro poder: a mulher queria colocar seu filho como soldado do Regimento de Cavalaria, mas, é claro, deveria estar enfrentando obstáculos; Tiradentes diz-lhe que deixasse estar que ele mesmo, num futuro próximo, faria isso pelo rapaz. E não foi dito apenas para a prostituta ouvir: os outros homens que ali estavam também o ouviram”. Como se pode notar, a língua frouxa de Tiradentes não só prometia casamentos, mas também alardeava aos quatro ventos os planos do malfadado levante. Há ainda informações que mostram que Xavier quis casar-se com uma rapariga de nome Maria, oriunda de São João del-Rei, filha de abastados portugueses. Seus planos de casamento, contudo, viram-se novamente frustrados, dessa vez não por conta da conduta da moça, mas porque os pais dela se opuseram à união. O alferes morreu solteiro. 

Outro detalhe curioso levantado pelo processo de Antônia Maria é a aparente contradição de que um homem que defendia a abolição da escravatura fosse, ele próprio, proprietário de escravos. É sabido que Tiradentes não só doou escravos para sua amásia Antônia Maria, mas também possuía alguns. Dentre os inconfidentes, foi um dos poucos que defenderam a abolição, na idealizada república a ser instaurada em Minas. Para o biógrafo Márcio Jardim, no entanto, não há qualquer incoerência na fórmula: “Tiradentes foi um homem comum de sua época. Não era pobre, teve fazenda, ganhava relativamente bem com as profissões de alferes (posto militar equivalente ao de tenente) e de dentista. Portanto, tinha escravos, assim como a maioria dos homens das classes média e alta da época os tinham”. André Figueiredo aponta o fato de que, no contexto da época, a idéia de liberdade não significava necessariamente rompimento com a ordem social, mas, sobretudo, com a ordem política – o que se queria, no fundo, era liberdade de comércio – e ressalta o quanto é difícil ir mais fundo na pesquisa desse tema, uma vez que o assunto da escravidão é muito pouco citado nos Autos da Devassa.
        

Todas essas pequenas histórias evocadas pelo processo de Antônia Maria soam estranhas por tratarem de um dos mais bem-sucedidos mitos históricos que o Brasil jamais criou (assunto mais detalhadamente tratado no artigo de José Murilo de Carvalho, presente nesta edição). São facetas demasiado humanas para um mártir que teve parte de sua imagem histórica criada à semelhança de Jesus Cristo, uma vez que não se conservaram registros fidedignos de sua aparência, mas tão-somente descrições faladas e pouco detalhadas. Mas, afinal, o que se ganha em pintar o rosto de um herói como Tiradentes com tintas mais humanas e reais, trazendo à tona toda a miséria de sua vida comum? Não seria um pouco incômodo, num país tão carente de heróis exemplares, desconstruir um dos seus mais sólidos mitos? Para André Figueiredo, não há como manchar o nome do alferes: “Não acho que o mito de Tiradentes será desfeito com a divulgação de informações sobre possíveis traços negativos de sua pessoa. Tiradentes não deve ser julgado por sua conduta íntima. O mito já está arraigado na História do Brasil. Sua associação à história do martírio de Jesus Cristo torna praticamente impossível fazer sua desconstrução. O ideal não é desconstruir o mito, mas procurar compreender sua construção, como se forjou Tiradentes como salvador da pátria, como a figura mais importante de nossa História, com direito inclusive a um feriado, o 21 de abril”. Na opinião de Márcio Jardim, Tiradentes não pode ser encarado apenas como um mito: “É um personagem real da História do Brasil. A circunstância de Tiradentes ser considerado mito deriva do fato de sua figura histórica ter sido apropriada ao longo da História do Brasil, tanto no Império como na República, e ainda no século XX ter sido usada indistintamente, tanto pela esquerda – como símbolo de revolta contra os opressores e dominadores – como pela direita, como símbolo de herói militar nacionalista. Na verdade, Tiradentes não precisa ser elogiado ou diminuído, mas entendido como homem iluminista, racional e radicalmente imbuído da convicção de que era melhor para o Brasil tornar-se independente de Portugal. Não deve haver releitura negativa ou positiva, mas tão-somente interpretação documental, segundo as características de sua época, e não de acordo com as do nosso tempo. Os documentos sobre Antônia Maria e Joaquina em nada diminuem ou elevam a figura pessoal ou histórica de Tiradentes. Apenas ajudam a situá-lo como homem comum que foi, distante de um personagem idealizado”.
Paulo da Costa e Silva é Jornalista da Revista de História da Biblioteca Nacional.

FONTE:http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/a-outra-face-do-alferes

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